Lucro e interesse público: a controvérsia da atuação estatal no mercado

Para censurar o excesso de lucratividade de uma estatal e a distribuição de seus resultados, o governante tem de convencer a opinião pública que o fim coletivo não foi atingido. Escreve Othon de Azevedo Lopes.

“Uma empresa particular deve ter sua autonomia respeitada pelo governo eleito”

Lula Petrobras foto Ricardo Stuckert

Uma forte polêmica em torno da relação entre governo e estatais instalou-se no país. Parte da imprensa e do mercado falou em “impactos desastrosos” da interferência do governo na Petrobras, determinando o diferimento da distribuição dos dividendos da empresa. Isso catalisou uma polêmica iniciada com a pretensão do governo de influir na indicação de conselheiros e diretores da Vale do Rio Doce, empresa privada “blue chip” na bolsa brasileira B3. Surge aí uma questão sobre qual deve ser a postura do governo na sua relação com as empresas estatais e com empresas privadas relevantes para a economia brasileira.

Um ponto inicial a ser colocado é que o art. 173 da Constituição Federal determina que a atuação do governo na atividade econômica deve acontecer por exceção, exigindo imperativo de segurança nacional ou relevante interesse coletivo e autorização legal. A ideia é que o mercado mostra-se como uma área em que os agentes econômicos privados devem predominar exercendo a sua autonomia e perseguindo o seu auto-interesse, o que legitima o auferimento de lucros, como prêmio de sua eficiência.

Uma vez competindo no mercado, o Estado deve fazê-lo em pé de igualdade com os particulares, o que os coloca no mesmo regime jurídico dos agentes econômicos privados. No entanto, a sua função social, derivada do imperativo de segurança nacional e/ou do relevante interesse coletivo, deve ser um dos guias da sua gestão. Quer dizer, o ambiente e o regime jurídico da empresa são privados, mas o seu objeto é público.

Disso resulta que, ao lado da sua função social, a empresa estatal oriente-se também pelo princípio da eficiência, que é tanto um imperativo constitucional para a administração pública direta e indireta como um critério econômico que rege o agir empresarial. A sobrevivência e o êxito de uma empresa é o resultado desse critério. De igual modo, o poder público deve maximizar os seus meios e promover o incremento social da riqueza.

Uma empresa é uma organização que congrega capital e trabalho, visando ao lucro. Ao adotarem forma de direito privado e submeterem ao princípio da eficiência, as empresas estatais não podem abdicar do retorno do seu capital, deixando de gerar lucro. Aliás, esse resultado positivo é índice de sua higidez, assinalando o seu êxito.

Todavia, o sucesso de uma estatal não se resume ao lucro. Está também na produção de utilidade que justifica a sua criação. A empresa de natureza pública legitima-se pela entrega de uma fruição que deve atender a necessidades coletivas. Em outras palavras, a empresa tem de produzir combustível, prestar serviços financeiros, fornecer energia elétrica, realizar serviços postais etc. Além disso, tem de fazê-lo buscando universalizar o acesso ao bem, entregá-lo a preços francamente competitivos, de modo diversificado e com qualidade.

De igual modo, no que diz respeito à seleção dos meios, ou seja, a organização da produção, a empresa estatal deve atuar respeitando a sua natureza pública, o que, na medida da compatibilidade com a sua natureza privada, impõe-lhe observar ainda os princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade.

Esse rol de exigências para a boa atuação de uma empresa pública reforça a excepcionalidade de sua criação. Não é algo singelo pautar-se por todos esses critérios e princípios. O Estado quando cria uma empresa pública deve fazê-lo por acreditar que os agentes econômicos privados por si só, ainda que bem regulados, não entregarão a utilidade de interesse público, de modo a satisfazer o interesse coletivo plenamente.

Uma última questão a ser abordada é a postura do Estado diante de empresas privadas relevantes para a economia brasileira. Aqui se tem algo diferente. Se se trata de uma genuinamente empresa privada o que vale é o princípio da autonomia e da liberdade de iniciativa, que é compatível com a coordenação da atividade econômica pelo Estado por meio da regulação. Todavia, não se pode falar em intervenção e interferência. Cabe-lhe respeitar as escolhas dos agentes privados como impulso inicial das atividades econômicas. O poder público não pode inibir a dinâmica espontânea do mercado.

Dessa forma, o governo eleito, de um lado, no que diz respeito às empresas estatais, deve ordenar a sua gestão para que haja uma resultante entre a sua eficiência e o interesse público que justifique a sua existência, ocupando aí o lucro a função de sinalizar a saúde da empresa, como agente econômico que está no mercado. A lucratividade de uma estatal só pode ser considerada excessiva se a utilidade pública que justifica a sua existência não estiver sendo produzida de modo a satisfazer o interesse coletivo. Assim, para censurar o excesso de lucratividade de uma empresa estatal e a distribuição de seus resultados, o governante tem de convencer a opinião pública que o fim coletivo não foi atingido. De outro lado, uma empresa particular deve ter sua autonomia respeitada pelo governo eleito, cabendo-lhe coordenar as atividades setoriais, valendo-se da regulação.

Por Othon de Azevedo Lopes, advogado, doutor em Direito e Filosofia do Estado, professor associado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília e sócio do Machado Gobbo Advogados.

Fonte: Gazeta do Povo

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